sábado, 21 de março de 2009

causa mortis

Todos os dias ele se posicionava naquele mesmo local. Sua cadeira de balanço já tinha as marcas do seu corpo mutilado e as cortinas, o cheiro impregnado do fumo barato. Por mais que tivesse medo de ser novamente recolhido à Casa Verde, ele insistia em senta-se ali todas as noites para observar os transeuntes. Sua diversão era imaginar o que se passava na cabeça desses ilustres desconhecidos da cidade. Suas paixões, seus medos, seus traumas e perversões. Eram todos seus amigos, seus cúmplices, a quem dignamente lhe confiavam os mais obscuros segredos.
Mas havia uma pessoa em especial por quem ele esperava por todo e sempre. Uma jovem moça, pele clara, cabelos cor de ferrugem, que passava por ali todos as noites, com passo apressado, corpo tenso, e um punhado de livros debaixo do braço. Talvez ela nunca tivesse notado o velho que a observava diariamente, enquanto esperava ansiosamente pela morte, nos confins daquele teatro inacabado abandonado pela prefeitura. Por mais que o homem desejasse intensamente o sepulcro, que aguardasse o dia em que aquela dor fosse enterrada profundamente junto com seu corpo, seu âmago protestava pelo corpo quente daquela jovem. O máximo que ele conseguia enxergar por baixo de todo aquele pano era seu pescoço, e sua imaginação fluía ardentemente ao pensar por quais motivos seus pêlos arrepiavam toda vez que passava naquela rua esquecida.
O dia em que os homens do governo o levaram no rabecão branco com o simples argumento de que “ele tem os pés no chão e a cabeça nas estrelas” e o deixaram amarrado e sedado por dias a fio, deixara profundas marcas em sua existência. Anos se passaram até que um belo dia ganhou alforria ao jurar eterna fidelidade a um tal senhor Jesus Cristo, humilde carpinteiro que residira naquela região há alguns milhares anos atrás. A partir daquele dia, um ritual igualmente importante ao do período noturno, era acordar bem cedo, antes mesmo do sol rajar as nuvens negras do céu, e se ajoelhar aos pés do seu senhor, o que lhe garantira suas liberdade. Por mais que o médico ainda o acusasse de comportar no corpo um algo estranho, era livre pela suas resignação. Tal qual o poeta que culpara o eu-lírico por todos os seus infortúnios, foi fácil ao seu ego, atribuir a uma porção de demônios encarnados, a culpa de viver constantemente no sutil limiar entre a loucura e o bom senso.
Nada mais se soube sobre esse homem, só mesmo que, alguns anos depois, de tanto pedir em oração ao seu Deus, encontrou a morte de forma doce e silenciosa. O seu filho, nascido do ventre da jovem moça de cabelo ferrugem, único herdeiro do gigantesco patrimônio deixado a esmo pelo velho, e ironicamente batizado de Jesus Cristo, mandara gravar na lápide do túmulo de seu falecido pai “Aqui jaz um homem da cidade. Causa mortis – solidão.”

terça-feira, 3 de março de 2009

Eu estou fazendo Arte e não Ciência. Para fazer Ciência basta uma boa capacidade de leitura e interpretação, e o mínimo de domínio da escrita. Para fazer arte não, tem que ter sensibilidade e uma boa dose de lirismo correndo nas veias. A Ciência é do domínio do conhecer, do fazer. A arte é da natureza do sentir, do ser.
A ciência surge de fora pra dentro, do caos que se instala em busca de uma possibilidade harmonização. Na mão dos cientistas, que não usam branco, mas dirigem carros com câmbio automático, dissemina-se o famigerado conhecimento, que quando muito ousado, consegue ultrapassar os muros da academia. A Ciência é daqueles que sustentam o capital, a exclusão e a guerra.
E do sangue dos mortos do holocausto se pinta a arte. Se não nas mãos do pintor, na ponta do lápis do poeta, se expressam os desajustados sentimentos. Da sublimação do desconcerto, do extravasar subjetivo ou simplesmente na visão sutil da beleza que reside na miséria, nasce o desconhecido, o inominável. A arte que faz o peito doer de fala de ar, arte da burguesia. Arte bruta, dos loucos.
Usurpando e adaptando as palavras de Jabor. Ciência é prosa (conversa fiada, no sentido mais chulo da palavra). Arte é poesia. E arte da ousadia é fazer arte consciência.