domingo, 30 de maio de 2010

Capítulo I – O balcão, os charutos e as doses

- Sinto que não tenho muito tempo. Por isso me sento aqui todas as noites e conta as minhas histórias para qualquer um que estiver disposto a ouvir. No fundo tenho a expectativa que um desses ilustres desconhecidos se disponha a transcrever a minha epopéia. Talvez possa entrar para o hall dos grandes imortais, e esse não é o sonho de todo e qualquer homem. Na verdade não sou tão ambicioso assim, me contentaria em me transformar em um livro, desses que ficam criando mofo em uma estante escondida de um sebo qualquer. Talvez um jovem idealista possa me encontrar por acaso e se embebedar no lirismo de uma história de vida real.
- Não, não estou doente. Nem sou tão velho quanto parece. Mais o corpo sente o passar inexorável dos anos. Embora a morte nos ronde desde que nascemos, um belo dia você se depara frente a frente com ela. A priori leva um susto, mais depois aprende a conviver com ela harmonicamente.
- A minha história de vida é a história das minhas paixões. Mesmo que as paixões, hora ou outra, tenham se tornado mais importantes que a própria vida. Apaixonei-me pelas idéias, pelas mulheres, pelo o álcool, pela arte e pela a revolução.
- Agora que não tenho quase nada com que me apegar, não vejo mais sentido em ficar vagando por esse mundo desolado.
- Não, não tenho religião. Não acredito em nada que minhas mãos não possam tocar. Depois que meu coração parar de bater, depois que parar de respirar, ponto final. Acabou. Por isso, como eu te disse, busco a imortalidade de outra forma, igualmente mesquinha e hipócrita.
- Filhos? Não, não tenho. Nem sequer me casei. E os poucos amigos que tive já se foram. Só me restaram as minhas memórias, e é delas que eu tenho me alimentado. Nem mesmo posso lhe dar a garantia de que tudo o que lhe falo seja real. A distância dos fatos me trazem o dever de te alertar sobre a possibilidade de hora ou outra a fantasia tomar o controle da minha narrativa.
- Se me arrependo? Não, de forma alguma. Aliás, essa palavra não faz parte do meu vocabulário. Cada ato, mesmo o mais irrefletido, traz sensações, sentimentos, sofrimentos. E cada um desses, com os mais diversos gêneros e amplitudes, são importantes para nossa construção. Para nossa construção e para nossa destruição também.

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